Fonte: http://www.jb.com.br
Não se trata de sociólogo, filósofo ou teólogo, mas de policial, o autor de uma das frases mais concisas sobre as razões da expansão do terrorismo islâmico na Europa. Ao comentar a ação da belga Muriel Degauque, que morreu no Iraque, ao explodir artefato que levava no corpo, um alto oficial do Setor de Antiterrorismo da Polícia Belga, Alain Grignard, disse ao jornalista Craig Smith, do New York Times: ''São pessoas que buscam, na religião, como a do Islã, um caminho para o exercício da solidariedade''.
Muriel nasceu e foi criada como católica, em região pobre da Bélgica, com uma economia fundada no carvão e na pequena siderurgia. Para ajudar um turco a obter residência, casou-se com ele por dois anos. Conheceu um argelino que a converteu ao islamismo e casou-se com um filho de pai belga e mãe marroquina. Isso pode explicar a adesão ao islamismo, mas não basta para levar ao martírio a jovem e bela mulher de 39 anos.
A visão comum que se tem do islamismo é a de que as mulheres vivem sob a opressão masculina, submetidas à poligamia, em regime de quase escravidão. Não obstante tudo isso, os serviços de informação da Europa estão certos de que outras européias, de milhares que são relacionadas com muçulmanos, seguirão o exemplo de Muriel. Provavelmente, de acordo com o policial belga, a Europa tenha perdido o senso da solidariedade. Não há mais, como havia nos anos 60 e 70, os movimentos de apoio às utopias revolucionárias da América do Sul e da África. Parecem já distantes da razão ocidental as gerações que se destacaram na luta pela igualdade e pela liberdade, com as brigadas internacionais contra o franquismo, e na resistência ao fascismo e ao nazismo, e no apoio aos movimentos revolucionários para a descolonização da África e da Ásia e às guerrilhas latino-americanas. Che Guevara parece ter sido o último herói daqueles anos gloriosos do século passado, em que se buscava construir um novo Ocidente, fraterno e solidário.
A cultura muçulmana é, desde as cruzadas, malvista e mal-entendida pela nobreza e pela hierarquia católica. Durante os quase 1.400 anos da nova religião, o desenvolvimento histórico foi marcado pelas guerras e pelo desconhecimento mútuo. Somente nos últimos dois séculos, o Oriente Médio passou a ser visto com mais atenção pela Europa do Norte, embora os países do Sul do continente tivessem convivido bem com os muçulmanos em muitas ocasiões históricas. A influência islâmica sobre o Ocidente é muito mais poderosa, do que a cristã sobre o Oriente Médio. Durante a Idade Média, coube aos árabes recuperar o pensamento greco-romano e o conhecimento científico e difundi-los nos países europeus. Há pouco tempo, o cardeal Biffi previa que, dentro de algum tempo, a Europa recuperaria o cristianismo ou se tornaria muçulmana - mas, com um nome ou com outro, Deus não a desertaria. Podemos ter outra leitura da advertência do cardeal de Bolonha: a Europa voltará a ser humanista, pelo menos da forma precária que era antes, tenha esse humanismo o nome que tiver. Os homens necessitam de oferecer e receber solidariedade, chave da sobrevivência da espécie, mesmo que essa solidariedade seja maculada pelo horror periódico das guerras.
Se o cristianismo de hoje não oferece a essa solidariedade a interpretação correta de seus textos, e se a fé não se encarna em atos reais, é natural que se busquem outros caminhos. O cristianismo continua sendo, para a razão ocidental, o melhor testemunho de amor e de fraternidade, e o seu grande inimigo não é o Islã.
O inimigo moderno tanto do cristianismo, quanto do islamismo, é a transformação do egoísmo e da ambição em sistema capitalista alucinado, no qual o mercado, e não os templos, o mercado, e não a razão, move os demônios do ódio racial e da ''guerra infinita''. É necessário impor limites éticos ao fundamentalismo do dinheiro. Se algumas pessoas não encontram o caminho da solidariedade na vida, é possível que venham a buscá-lo na morte - como parece ter feito a belga Muriel Degauque. A sua pode não ter sido a melhor causa, mas foi, enfim, uma causa.
*Mauro Santayana