Enviado: Qui Mai 25, 2006 10:39 pm
GENOCÍDIO – A DESTRUIÇÃO DAS MINORIAS – parte final.
Ward Rutherford (digitado por Adolfo Luna Neto)
Saindo do caos
A possibilidade de derrota da Alemanha, que já em 1942 se deixava entrever, pelo outono de 1944 se mostrava plenamente inevitável. As esperanças de vitória dos Aliados aumentaram após os desembarques do Dia "D", a 6 de junho, e a instalação dos exércitos aliados no continente europeu.
Os campos de extermínio já vinham funcionando há dois anos, consumindo numerosíssimas vidas humanas. Enquanto isso, o Exército Vermelho vinha avançando sistematicamente, expulsando os alemães de territórios conquistados mais recentemente e passando de volta pela Polônia e pelos países aliados de Hitler, Hungria, Romênia, Bulgária. A 24 de julho, o Exército Vermelho entrou em Lublin - onde não havia mais judeus - e a imprensa aliada publicou as primeiras histórias dos campos de concentração e do maciço extermínio neles verificado, pois os correspondentes de guerra puderam ver as pequenas câmaras de gás (Majdanek, o campo de Lublin, não chegara a ser um grande centro de extermínio), os crematórios, as latas de Zyklon B e ossos humanos.
O que restava da população judia confinada na linha do avanço dos russos não lhes cairia nas mãos, desde que Hitler pudesse evitar. Eles foram tirados do alcance da libertação e levados para a Alemanha. Onde isso não podia ser feito, os judeus eram executados sumariamente. Os deslocamentos para oeste haviam começado já no verão, quando 27.000 judeus foram evacuados, em julho, de nove campos, de Radom e Cracóvia, e quase 4.000 do campo aberto no antigo gueto de Varsóvia, bem como de outros. Durante a marcha, centenas foram metralhados, e os que sobreviveram foram diretamente para Auschwitz.
Quando isto não era possível, os migrantes eram simplesmente amontoados nos campos de concentração alemães, nos quais havia cerca de 500.000 pessoas - número este que, naturalmente, as seleções e a "diminuição natural" vinham reduzindo. Contudo, em meados do verão de 1944, julgavam os nazistas poderem colocar o dobro desse número nos campos, mas somente uns 100.000 judeus foram somados aos presos ali admitidos, sobretudo porque os alemães temiam epidemias, se mais gente fosse confinada em tais campos.
Os cativos estavam, a essa altura, perfeitamente a par do que os aguardava. Se não morressem de fome, de frio ou de doença, ou se não caíssem durante as longas marchas a que eram obrigados, quando eram fuzilados, seriam exterminados em massa. Afinal de contas, Auschwitz estava funcionando a todo vapor nessa época, e foi em maio (antes que o Dia "D" mudasse a direção da guerra) que Himmler falou com franqueza incomum sobre a questão judaica. Os judeus, disse ele numa reunião de oficiais nazistas, em Posen, deveriam ser mortos, homens, mulheres e crianças. "Fomos obrigados a admitir que essa gente tem de desaparecer da face da terra", disse-lhes ele, como se anunciasse novas providências contra uma peste.
Mas as coisas não eram como pareciam ser.
Himmler pensara profundamente sobre seu próprio futuro numa Alemanha derrotada e submetida às Nações Unidas. Em particular, pensava nos seus reféns. Já se inaugurara um campo de troca no campo de concentração de Bergen-Belsen e, em maio, o mês do seu discurso, Eichmann teve um encontro com Joel Brand, da Comissão Sionista de Ajuda de Budapeste, durante o qual foi discutida a troca de 10.000 caminhões pesados, para a máquina de guerra alemã, pela vida de 700.000 judeus húngaros. Os veículos seriam fornecidos pelos Aliados através de Salônica, mas o plano deu em nada, quando a história foi publicada pela imprensa aliada.
Então, em julho, houve outra proposta, desta vez feita por outro sionista de Budapeste, o Dr. Reszoe Kastner. Era a troca de 100.000 vidas judaicas por cinco milhões de francos suíços. Himmler examinou os termos da proposta e contrapropôs: 30.000 judeus, fisicamente perfeitos, por seis milhões de dólares. Os judeus não seriam entregues, mas "guardados" no campo de trabalho austríaco, Strasshof. Só foram conseguidos 1.800.000 dólares e, por este preço, 9.000 judeus foram "guardados".
As negociações sofreram nova interrupção, quando Kastner foi informado de que Himmler estava decidido a não deixar um só judeu sair da Europa, embora talvez houvesse possibilidade de acordo sobre os judeus de Bergen-Belsen, entre os quais se encontravam 1.684 judeus de Budapeste. As conversações foram reiniciadas, dessa vez na Suíça, e, como demonstração de boa-fé do lado alemão, cerca de 318 desse grupo de judeus de Budapeste foram levados até o outro lado da fronteira, na Basiléia. Os alemães formularam então uma proposta para suspender não só as deportações, como também os envenenamentos a gás em troca de material bélico. Mas o negociador judeu não estava autorizado a aceitar a proposta. Em vez disso, ele fez uma oferta de 15.000.000 de francos suíços pela suspensão do banimento de judeus da Tchecoslováquia e Hungria, seguido da entrega à Suíça dos que restavam em Bergen-Belsen.
O dinheiro para este fim (ao todo 20.000.000 de francos suíços) foi coletado nos Estados Unidos, em campanhas de caridade, e a transação poderia ter sido completada com sucesso, mas Cordell Hull, Secretário de Estado dos Estados Unidos, só consentia na transferência de cinco milhões para a Suíça. Edward Stettinius Jr., que substituiu Hull pouco depois; cancelou inclusive a transferência dos cinco milhões, e somente a 6 de fevereiro é que Himmler os recebeu, através do Presidente da Suíça, Jean-Marie Musi. Um total de 2.684 judeus foi então transferido para a Suíça. Durante o inverno providenciou-se um encontro entre Himmler e Musi. Ainda em troca de dinheiro, em lugar de equipamento e suprimentos médicos; que Himmler exigira originariamente, 1.200 judeus seriam enviados, por trem, para a Suíça todas as quinzenas. Os termos do negócio previam inclusive a criação de um plano de propaganda, a ser feito na Europa, em que a Alemanha deveria deixar de ser considerada como assassina dos judeus.
O plano chegou aos ouvidos de um Hitler enfurecido e ultrajado, que disse a Himmler que ordenasse a destruição de todos os campos de concentração e extermínio, em caso de perigo de serem tomados pelo inimigo, sendo antes mortos todos os seus internos.
Mas as negociações inconcludentes e sobretudo o desejo de Himmler de "mudar sua imagem" resultaram em algum bem. Em outubro de 1944, as seleções para a câmara de gás em Auschwitz foram suspensas. Em setembro, uma missão da Cruz Vermelha Internacional tivera permissão de entrar no campo, embora só para uma entrevista com Baer, o comandante que substituíra Höss. Mas os prisioneiros de guerra britânicos que trabalhavam na fábrica de borracha sintética, e que foram entrevistados, chamaram a atenção da missão para os envenenamentos a gás, mas quando os seus integrantes tentaram junto aos internos confirmar a denúncia recebida, eles se recusaram a falar. Mas após a visita da missão as condições no campo melhoraram.
Então, em novembro, Himmler deu ordens para que os crematórios fossem desmontados. Auschwitz chegava ao fim, depois de dois anos e meio de atividade incessante, como usina da morte. Höss gabara-se de ter matado 2.500.000 judeus. Porém, o número mais certo, ainda que horrível, é de 840.000, provindos da Bélgica, Croácia, França, Alemanha, Tchecoslováquia, Grécia, Holanda, Hungria, Itália, Luxemburgo, Noruega, Polônia, do Báltico e da Eslováquia, tendo fornecido o maior contingente a Hungria, 380.000, e cerca de 180.000 da Polônia e do Báltico. A grande maioria destes, entre 550.0000 e 600.000, foi seguramente envenenada a gás ao chegar, e "selecionada" tão logo os trens dos desgraçados alcançavam o desvio de Birkenau. Mas, além desses, numerosíssimos outros internos daquele campo morreram na câmara de gás, por serem classificados como "incapazes para o trabalho".
Os judeus do Comando Especial, que cuidava dos cadáveres em Auschwitz após o envenenamento a gás, sabiam perfeitamente o destino que os aguardava com a nova ordem de Himmler e tentaram uma revolta que fracassou. Em fins de novembro, foram levados para o Birkenwald e fuzilados.
À medida que os russos se aproximavam, os internos dos campos começaram a ser distribuídos por outros, situados na Alemanha. Os primeiros deslocamentos foram relativamente organizados; grande número de mulheres foram transferidas de Birkenau para Bergen-Belsen, campo que Josef Kramer, comandante de Birkenau ao tempo em que era o principal centro de extermínio, recebera ordens de organizar.
Mais tarde, com 64.000 pessoas ainda no campo e com os canhões russos já audíveis, a evacuação tornou-se caótica. Milhares viajavam apenas em uniformes da prisão, em vagões abertos e em pleno inverno. Outros iam a pé. Distribuíram-nos por Dachau, Dora, Mauthausen, Ravensbrück, Sachsenhausen e Buchenwald, que recebeu a maior quantidade, ou seja, 13.886 cativos.
Quando os russos chegaram a Auschwitz, a 26 de janeiro, encontraram apenas 2.819 inválidos nos campos, à maioria dos quais puderam devolver à saúde.
Havia então no Reich sitiado cerca de 700.000 internos em campos de concentração. A vida de todos eles piorava dia a dia, proporcionalmente à deterioração das condições vigentes na Alemanha. E a situação em nada melhorou com as demarches secretamente desenvolvidas por Himmler e outros líderes das SS junto a autoridades aliadas com o objetivo de salvar a pele. Muitas vezes essas atividades ocultas resultavam em conflito com seus interesses ou com os pontos de vista de algum superidealista da "Solução Final", como Eichmann, que faria o máximo para sabotar os planos dos seus colegas.
O próprio Himmler estava então empenhado em novas negociações destinadas a evitar a ordem de destruir os campos e os que neles se encontravam. A 12 de março ele concordou em suspender as execuções e entregar os campos intactos. A 19 de abril, o Dr. Norberg Masur, diretor do setor suíço do Congresso Judeu Mundial, chegou a Berlim para tratar do problema judeu com seu arquiinimigo. Himmler, ainda aterrorizado com a possibilidade de que Hitler viesse a descobrir o que ele fizera, não podia prender-se a coisas específicas, mas acordaram nalguns pontos, com a ajuda de Kersten, o massagista de Himmler, que já tanta coisa havia feito para ajudar nessas negociações salva-vidas.
Mas o jogo de xadrez com vidas humanas prosseguia. Os representantes da Cruz Vermelha suíça estavam tentando inutilmente entrar nos campos, falar abertamente com os internos e fazer uma estimativa do tipo de ajuda necessária. O representante da Cruz Vermelha sueca, Conde Folke Bernadotte, conseguiu penetrar em Neuengamme, próximo de Hamburgo, mas o máximo que pôde fazer foi conversar com um interno de Oranienburg, na presença dos seus carcereiros e de importantes oficiais das SS.
Naturalmente, quem primeiro entrou em campo de concentração alemão foram os russos. Os alemães tentaram livrar-se das acusações que lhes foram feitas alegando que não passavam de propaganda comunista, referindo a descoberta que fizeram na floresta de Katyn, no ano anterior quando descobriram os cadáveres de milhares de oficiais poloneses assassinados pelos soviéticos. Mas outra força aliada se aproximava de Buchenwald. Eram os americanos e, a 3 de abril, teve início uma evacuação em massa. Mais de metade dos 48.000 confinados no campo principal foi mandada para o sul da Alemanha, de trem. Alguns dias depois, 4.500 judeus de um dos campos-satélites também partiram; 1.500 estavam mortos ao chegarem a Dachau. Tudo isso a despeito da promessa de Himmler de que o campo seria entregue intacto.
Mais ou menos ao mesmo tempo, soldados britânicos aproximaram-se de Bergen-Belsen. As descobertas feitas ali tornaram-se famosas. No Campo I, 40.000 pessoas foram encontradas vivendo em meio a 13.000 cadáveres insepultos, mas em condições tão ruins que muitos morreram após a libertação. O tifo, que por ali grassava violento, vitimou muitos internos, principalmente judeus da Hungria e Polônia, que eram maioria ali.
Os Aliados têm sido criticados, de certa maneira justificadamente, por se terem aproveitado logo das descobertas de campos de concentração para fazer propaganda. Com isso, fizeram que os alemães decidissem não abandonar as áreas em que havia campos de concentração sem antes os evacuar, se possível. E o problema fugira das mãos de Himmler, pois Hitler ordenara que todo interno dos campos que pudesse andar tinha de ser deslocado.
Quando a evacuação não fosse possível, teriam de ser massacrados. Isto quase se realizou em Dachau, pois havia um plano para colocar ali os internos dos campos circundantes e bombardeá-los do ar. Mas os acontecimentos foram mais rápidos. Os americanos, a 24 de abril, entraram em Dachau, onde encontraram numerosos semivivos e semimortos.
Em Theresienstadt, onde Eichmann prometera ao representante da Cruz Vermelha que não havia mais uma única deportação, soube-se, a 12 de abril, que todos os arquivos do campo tinham sido destruídos, dando a impressão de que se pretendia fazer um massacre. O campo estava sufocantemente lotado de evacuados de quatro outros campos. Contudo, graças ás providências tomadas pela Cruz Vermelha, que de imediato hasteou sua bandeira no campo, os que ali estavam foram salvos da execução ou evacuação.
Por toda a Alemanha, delegados da Cruz Vermelha lutavam então por salvar o que restava das populações dos campos de concentração. Em Mauthausen, superlotado, como todos os outros, de gente vinda de outros campos, eles conseguiram impedir a concretização do plano de pôr os prisioneiros numa fábrica subterrânea e fazê-la ir pelos ares. A 8 de maio, o campo foi entregue às tropas de Patton.
Apesar de se encontrar a Alemanha já com os dias contados, as evacuações não paravam. Em Oranienburg, os prisioneiros eram removidos praticamente aos olhos dos russos e com os agentes da Cruz Vermelha sueca impotentes para agir. Tudo o que podiam fazer era acompanhar a coluna, fornecendo-lhe comida e transportando os doentes para trás das linhas aliadas. Ao mesmo tempo, de Sachsenhausen e Ravensbrück, colunas idênticas, de homens e mulheres famintos, esgotados e desesperançados, estavam sendo levados para os últimos bolsões de resistência nazistas. Contudo, dera-se uma ordem que modificara a vigente nessas ocasiões: os desgarrados não deviam ser fuzilados. Eram recolhidos por caminhões da Cruz Vermelha.
Quando seus salvadores se debruçavam sobre eles, para levantá-los, os prisioneiros, já por hábito, imploravam que não os fuzilassem.
A tragédia teve prosseguimento até os últimos dias de abril - dias que Hitler dedicou á feitura de seu testamento, em que instava seus sucessores a prosseguir na política por ele adotada.
Alguns dias mais tarde a guerra na Europa terminava.
Hitler estava morto, assim como Heydrich e Himmler. Kaltenbrunner em breve seria julgado em Nuremberg e, depois, enforcado. Eichmann desaparecera, e também Höss, por algum tempo. Muitos seriam descobertos nos anos seguintes; alguns jamais o foram.
Mortos também se encontravam numerosíssimos judeus da Europa. Em 1939, segundo os números constantes do anuário judeu americano publicado em 1946-1947, as populações judias da Alemanha, seus aliados, satélites e nações submetidas montavam a 9.282.500. Por volta de 1946 não iam além de 3.169.000, uma queda de quase dois terços. Os dois países em que se registraram as mais acentuadas baixas foram, como seria de esperar, a Áustria e a Alemanha. A população judaica alemã de 1939, de 240.000 caíra para um vinte avos daquele número; a população austríaca, de 60.000 desceu para um doze avos. Mas não se pode atribuir o fato exclusivamente à "Solução Final". No tocante à Alemanha e à Áustria, houve o concurso também do êxodo maciço registrado após a guerra. Sem nos determos no exame pormenorizado do número de baixas nação por nação, por ser de certo modo especulativo, fontes as mais fidedignas situam em torno de 4.500.000 o número de judeus mortos no transcurso do segundo conflito mundial.
Entretanto, a rendição incondicional da Alemanha não representou a solução do problema físico e psicológico dos que sobreviveram ao holocausto, criado pelo regime nazista e pela "Solução Final".
Duas décadas se passariam até que os campos de "Pessoas Deslocadas" se esvaziassem, enquanto que um mundo negligente, o mesmo que permitira a realização da "Solução Final", cuidava dos seus negócios. Tornou-se lugar-comum dizer que, por trás da apatia humana, o que ocorreu foi um crime mais espantoso que a sangrenta história do homem registra. Sua enormidade e a complexidade que dessa enormidade surgiu são tais, que desafiam a narrativa coerente ou completa. Sob todos os aspectos, foi a realização de uma psicose em escala nacional. E talvez seja por causa disso que, embora plenamente documentado - graças sobretudo à devoção dos seus perpetradores à ordem e ao procedimento - ele ainda esteja cercado por mistérios oriundos das intrigas e da necessidade de segredo entre homens que sabiam estar cometendo crime, apesar das desculpas de que agiam em consonância com suas teorias raciais. Já existem bibliotecas inteiras sobre o assunto e nenhum dos livros diz tudo o que tem a ser dito; muitos tratam apenas de uma faceta do problema, de um incidente, da história de um campo ou de um massacre.
Mas outro lugar-comum é dizer que, apesar de toda a sua hediondez, o crime foi totalmente inútil. Ele não deu a menor vantagem aos nazistas. Apesar das invencionices sobre tramas sionistas, das mentiras reformadas dos "Protocolos dos Sábios de Sião", das supostas conspirações financeiras da judiaria internacional, em doze anos de perseguição, com milhões de palavras e de documentos judeus sendo por eles manipulados, não conseguiram os nazistas propagandear nada de útil a seus propósitos. Os judeus não eram os todo-poderosos que Hitler imaginava; nem na Grã-Bretanha nem nos Estados Unidos eles conseguiram o apoio que poderia ter salvo grande percentagem deles. Enquanto isso, as provas que os nazistas encontraram apenas mostravam que os judeus, homens e mulheres, se consideravam tão alemães quanto seus perseguidores. Nas sinagogas, a maioria rezava não pelo sucesso de conspirações apócrifas, mas pelo seu país e pelos seus governantes, como nas sinagogas britânicas eles hoje rezam pela Rainha e pela nação, usando as formas do "Livro das Orações" da Igreja Anglicana. Tal era o patriotismo que nutriam, que as velhas e tradicionais famílias de judeus alemães se recusavam a deixar o país, aguardando a "recolonização" em casa, com as malas prontas.
Longe de lucrarem com a "Solução Final", os alemães contribuíram, instituindo-a, para a própria queda. Além de fazer o mundo voltar-se contra eles, a medida levou-os ao suicida desperdício de cientistas, de técnicos e de mão-de-obra especializada. Também houve má aplicação de recursos técnicos limitados, tais como a sobrecarga de um sistema de transporte já sob a pressão causada pelos ataques aéreos aliados. Por causa disso, suprimentos vitais não chegavam à frente de batalha. Havia o bloqueio das estradas quando milhares de prisioneiros eram evacuados, e tudo isso no momento em que a nação já lutava pela própria sobrevivência. Eichmann seria capaz de rir alegremente diante da queda de qualquer cidade alemã, desde que o último trem a deixá-la estivesse levando judeus para os campos da morte!
A fidelidade aos programas da "Solução Final" deve ter criado para as forças combatentes muito mais dificuldade de comunicação do que qualquer movimento de resistência. E ela causou um dano muito maior para a causa alemã. Tem-se afirmado coerentemente que se os alemães se tivessem comportado de maneira diferente durante a campanha russa; se Hitler não tivesse dado suas notórias ordens que fizeram dela uma "guerra sem cavalheirismo", o resultado poderia ter sido muito diferente. Os Estados Bálticos já se sentiam atormentados sob o jugo stalinista. Milhares haviam sido deportados, para destruir neles o nacionalismo e o espírito de independência. Havia outros grupos assim, na própria Rússia, que podiam passar para o lado alemão, e às vezes passavam, pois a Rússia, não nos esqueçamos, ainda é um império de nações independentes reunidas sob um governo central por czares despóticos e brutais. Se Hitler quisesse destruir o bolchevismo, este teria sido o meio de fazê-lo. Suas barbaridades permitiram a Stalin a chance de exigir de todo o povo que travasse uma "guerra patriótica". E para isso os Einsatzgruppen muito contribuíram, pois, seja qual for o sentimento do povo em relação à minoria que lhe tenha varado a fronteira, mesmo que a tenha na conta de elemento de libertação, ao ser alvo de barbaridades, de tratamento impiedosamente cruel, inconcebe o princípio segundo o qual o "inimigo do meu inimigo é meu amigo". Sobretudo quando, como aconteceu com os Einsatzgruppen, pouco se cuidava para que somente as pessoas certas fossem executadas. Administradores alemães, como Wilhelm Kube, chegaram a protestar que não só judeus, mas também a população em geral, sem quaisquer conexões comunistas, estavam sendo saqueados e fuzilados. E mesmo que aqueles grupos tivessem sido mais escrupulosos, seria bom que lembrassem que tais demonstrações de violência crua não ajudam em nada a criar confiança entre os "libertados". Há de sempre prevalecer a sensação de que também possam vir a ser tratados assim.
A "Solução Final" não foi apenas um crime de proporções inimagináveis, com uma única vítima multiplicada ao infinito. Foram três grandes crimes, dos quais o cometido contra os judeus foi apenas o primeiro. O segundo foi ter levado homens, em nada diferentes de seus semelhantes, a se desfazerem do mais comezinho princípio de decência a ponto de se prestarem a servir de cúmplices na trama diabólica. É inútil tentar crer que tudo seja culpa do sistema. Os homens precedem os sistemas; não existisse o homem não existiria o sistema. Se havia um sistema errado, este era mais antigo que o instalado pelos nazistas. Era o velho sistema humano da complacência, da apatia, da covardia moral, de se adotar a posição de menor resistência.
O terceiro grande crime foi o perpetrado contra toda a raça humana. Antes da segunda década deste século, a melhor representação do inferno era encontrada no "Inferno" de Dante ou nas pinturas de Bosch e Dürer. Entretanto, Verdun, Hiroxima e a "Solução Final", episódios das duas grandes convulsões mundiais reproduziram melhor o reino de Satanás que a concepção artística de Dante, Bosch e Dürer.
Além disso, o que os homens foram ou o que fizeram podem novamente ser ou fazer. O primeiro crime probabiliza os subseqüentes. Basta que pensemos na Europa de antes de 1914 para ver o que três décadas e três visões do Inferno fizeram ao que outrora era uma crença na boa vontade básica, mesmo dos inimigos. A "Solução Final" deixou-nos para sempre receosos de que as teorias raciais que elegeram os judeus em vítimas podem fazer de outro grupo étnico qualquer alvo de perseguições e abominações.
Ward Rutherford (digitado por Adolfo Luna Neto)
Saindo do caos
A possibilidade de derrota da Alemanha, que já em 1942 se deixava entrever, pelo outono de 1944 se mostrava plenamente inevitável. As esperanças de vitória dos Aliados aumentaram após os desembarques do Dia "D", a 6 de junho, e a instalação dos exércitos aliados no continente europeu.
Os campos de extermínio já vinham funcionando há dois anos, consumindo numerosíssimas vidas humanas. Enquanto isso, o Exército Vermelho vinha avançando sistematicamente, expulsando os alemães de territórios conquistados mais recentemente e passando de volta pela Polônia e pelos países aliados de Hitler, Hungria, Romênia, Bulgária. A 24 de julho, o Exército Vermelho entrou em Lublin - onde não havia mais judeus - e a imprensa aliada publicou as primeiras histórias dos campos de concentração e do maciço extermínio neles verificado, pois os correspondentes de guerra puderam ver as pequenas câmaras de gás (Majdanek, o campo de Lublin, não chegara a ser um grande centro de extermínio), os crematórios, as latas de Zyklon B e ossos humanos.
O que restava da população judia confinada na linha do avanço dos russos não lhes cairia nas mãos, desde que Hitler pudesse evitar. Eles foram tirados do alcance da libertação e levados para a Alemanha. Onde isso não podia ser feito, os judeus eram executados sumariamente. Os deslocamentos para oeste haviam começado já no verão, quando 27.000 judeus foram evacuados, em julho, de nove campos, de Radom e Cracóvia, e quase 4.000 do campo aberto no antigo gueto de Varsóvia, bem como de outros. Durante a marcha, centenas foram metralhados, e os que sobreviveram foram diretamente para Auschwitz.
Quando isto não era possível, os migrantes eram simplesmente amontoados nos campos de concentração alemães, nos quais havia cerca de 500.000 pessoas - número este que, naturalmente, as seleções e a "diminuição natural" vinham reduzindo. Contudo, em meados do verão de 1944, julgavam os nazistas poderem colocar o dobro desse número nos campos, mas somente uns 100.000 judeus foram somados aos presos ali admitidos, sobretudo porque os alemães temiam epidemias, se mais gente fosse confinada em tais campos.
Os cativos estavam, a essa altura, perfeitamente a par do que os aguardava. Se não morressem de fome, de frio ou de doença, ou se não caíssem durante as longas marchas a que eram obrigados, quando eram fuzilados, seriam exterminados em massa. Afinal de contas, Auschwitz estava funcionando a todo vapor nessa época, e foi em maio (antes que o Dia "D" mudasse a direção da guerra) que Himmler falou com franqueza incomum sobre a questão judaica. Os judeus, disse ele numa reunião de oficiais nazistas, em Posen, deveriam ser mortos, homens, mulheres e crianças. "Fomos obrigados a admitir que essa gente tem de desaparecer da face da terra", disse-lhes ele, como se anunciasse novas providências contra uma peste.
Mas as coisas não eram como pareciam ser.
Himmler pensara profundamente sobre seu próprio futuro numa Alemanha derrotada e submetida às Nações Unidas. Em particular, pensava nos seus reféns. Já se inaugurara um campo de troca no campo de concentração de Bergen-Belsen e, em maio, o mês do seu discurso, Eichmann teve um encontro com Joel Brand, da Comissão Sionista de Ajuda de Budapeste, durante o qual foi discutida a troca de 10.000 caminhões pesados, para a máquina de guerra alemã, pela vida de 700.000 judeus húngaros. Os veículos seriam fornecidos pelos Aliados através de Salônica, mas o plano deu em nada, quando a história foi publicada pela imprensa aliada.
Então, em julho, houve outra proposta, desta vez feita por outro sionista de Budapeste, o Dr. Reszoe Kastner. Era a troca de 100.000 vidas judaicas por cinco milhões de francos suíços. Himmler examinou os termos da proposta e contrapropôs: 30.000 judeus, fisicamente perfeitos, por seis milhões de dólares. Os judeus não seriam entregues, mas "guardados" no campo de trabalho austríaco, Strasshof. Só foram conseguidos 1.800.000 dólares e, por este preço, 9.000 judeus foram "guardados".
As negociações sofreram nova interrupção, quando Kastner foi informado de que Himmler estava decidido a não deixar um só judeu sair da Europa, embora talvez houvesse possibilidade de acordo sobre os judeus de Bergen-Belsen, entre os quais se encontravam 1.684 judeus de Budapeste. As conversações foram reiniciadas, dessa vez na Suíça, e, como demonstração de boa-fé do lado alemão, cerca de 318 desse grupo de judeus de Budapeste foram levados até o outro lado da fronteira, na Basiléia. Os alemães formularam então uma proposta para suspender não só as deportações, como também os envenenamentos a gás em troca de material bélico. Mas o negociador judeu não estava autorizado a aceitar a proposta. Em vez disso, ele fez uma oferta de 15.000.000 de francos suíços pela suspensão do banimento de judeus da Tchecoslováquia e Hungria, seguido da entrega à Suíça dos que restavam em Bergen-Belsen.
O dinheiro para este fim (ao todo 20.000.000 de francos suíços) foi coletado nos Estados Unidos, em campanhas de caridade, e a transação poderia ter sido completada com sucesso, mas Cordell Hull, Secretário de Estado dos Estados Unidos, só consentia na transferência de cinco milhões para a Suíça. Edward Stettinius Jr., que substituiu Hull pouco depois; cancelou inclusive a transferência dos cinco milhões, e somente a 6 de fevereiro é que Himmler os recebeu, através do Presidente da Suíça, Jean-Marie Musi. Um total de 2.684 judeus foi então transferido para a Suíça. Durante o inverno providenciou-se um encontro entre Himmler e Musi. Ainda em troca de dinheiro, em lugar de equipamento e suprimentos médicos; que Himmler exigira originariamente, 1.200 judeus seriam enviados, por trem, para a Suíça todas as quinzenas. Os termos do negócio previam inclusive a criação de um plano de propaganda, a ser feito na Europa, em que a Alemanha deveria deixar de ser considerada como assassina dos judeus.
O plano chegou aos ouvidos de um Hitler enfurecido e ultrajado, que disse a Himmler que ordenasse a destruição de todos os campos de concentração e extermínio, em caso de perigo de serem tomados pelo inimigo, sendo antes mortos todos os seus internos.
Mas as negociações inconcludentes e sobretudo o desejo de Himmler de "mudar sua imagem" resultaram em algum bem. Em outubro de 1944, as seleções para a câmara de gás em Auschwitz foram suspensas. Em setembro, uma missão da Cruz Vermelha Internacional tivera permissão de entrar no campo, embora só para uma entrevista com Baer, o comandante que substituíra Höss. Mas os prisioneiros de guerra britânicos que trabalhavam na fábrica de borracha sintética, e que foram entrevistados, chamaram a atenção da missão para os envenenamentos a gás, mas quando os seus integrantes tentaram junto aos internos confirmar a denúncia recebida, eles se recusaram a falar. Mas após a visita da missão as condições no campo melhoraram.
Então, em novembro, Himmler deu ordens para que os crematórios fossem desmontados. Auschwitz chegava ao fim, depois de dois anos e meio de atividade incessante, como usina da morte. Höss gabara-se de ter matado 2.500.000 judeus. Porém, o número mais certo, ainda que horrível, é de 840.000, provindos da Bélgica, Croácia, França, Alemanha, Tchecoslováquia, Grécia, Holanda, Hungria, Itália, Luxemburgo, Noruega, Polônia, do Báltico e da Eslováquia, tendo fornecido o maior contingente a Hungria, 380.000, e cerca de 180.000 da Polônia e do Báltico. A grande maioria destes, entre 550.0000 e 600.000, foi seguramente envenenada a gás ao chegar, e "selecionada" tão logo os trens dos desgraçados alcançavam o desvio de Birkenau. Mas, além desses, numerosíssimos outros internos daquele campo morreram na câmara de gás, por serem classificados como "incapazes para o trabalho".
Os judeus do Comando Especial, que cuidava dos cadáveres em Auschwitz após o envenenamento a gás, sabiam perfeitamente o destino que os aguardava com a nova ordem de Himmler e tentaram uma revolta que fracassou. Em fins de novembro, foram levados para o Birkenwald e fuzilados.
À medida que os russos se aproximavam, os internos dos campos começaram a ser distribuídos por outros, situados na Alemanha. Os primeiros deslocamentos foram relativamente organizados; grande número de mulheres foram transferidas de Birkenau para Bergen-Belsen, campo que Josef Kramer, comandante de Birkenau ao tempo em que era o principal centro de extermínio, recebera ordens de organizar.
Mais tarde, com 64.000 pessoas ainda no campo e com os canhões russos já audíveis, a evacuação tornou-se caótica. Milhares viajavam apenas em uniformes da prisão, em vagões abertos e em pleno inverno. Outros iam a pé. Distribuíram-nos por Dachau, Dora, Mauthausen, Ravensbrück, Sachsenhausen e Buchenwald, que recebeu a maior quantidade, ou seja, 13.886 cativos.
Quando os russos chegaram a Auschwitz, a 26 de janeiro, encontraram apenas 2.819 inválidos nos campos, à maioria dos quais puderam devolver à saúde.
Havia então no Reich sitiado cerca de 700.000 internos em campos de concentração. A vida de todos eles piorava dia a dia, proporcionalmente à deterioração das condições vigentes na Alemanha. E a situação em nada melhorou com as demarches secretamente desenvolvidas por Himmler e outros líderes das SS junto a autoridades aliadas com o objetivo de salvar a pele. Muitas vezes essas atividades ocultas resultavam em conflito com seus interesses ou com os pontos de vista de algum superidealista da "Solução Final", como Eichmann, que faria o máximo para sabotar os planos dos seus colegas.
O próprio Himmler estava então empenhado em novas negociações destinadas a evitar a ordem de destruir os campos e os que neles se encontravam. A 12 de março ele concordou em suspender as execuções e entregar os campos intactos. A 19 de abril, o Dr. Norberg Masur, diretor do setor suíço do Congresso Judeu Mundial, chegou a Berlim para tratar do problema judeu com seu arquiinimigo. Himmler, ainda aterrorizado com a possibilidade de que Hitler viesse a descobrir o que ele fizera, não podia prender-se a coisas específicas, mas acordaram nalguns pontos, com a ajuda de Kersten, o massagista de Himmler, que já tanta coisa havia feito para ajudar nessas negociações salva-vidas.
Mas o jogo de xadrez com vidas humanas prosseguia. Os representantes da Cruz Vermelha suíça estavam tentando inutilmente entrar nos campos, falar abertamente com os internos e fazer uma estimativa do tipo de ajuda necessária. O representante da Cruz Vermelha sueca, Conde Folke Bernadotte, conseguiu penetrar em Neuengamme, próximo de Hamburgo, mas o máximo que pôde fazer foi conversar com um interno de Oranienburg, na presença dos seus carcereiros e de importantes oficiais das SS.
Naturalmente, quem primeiro entrou em campo de concentração alemão foram os russos. Os alemães tentaram livrar-se das acusações que lhes foram feitas alegando que não passavam de propaganda comunista, referindo a descoberta que fizeram na floresta de Katyn, no ano anterior quando descobriram os cadáveres de milhares de oficiais poloneses assassinados pelos soviéticos. Mas outra força aliada se aproximava de Buchenwald. Eram os americanos e, a 3 de abril, teve início uma evacuação em massa. Mais de metade dos 48.000 confinados no campo principal foi mandada para o sul da Alemanha, de trem. Alguns dias depois, 4.500 judeus de um dos campos-satélites também partiram; 1.500 estavam mortos ao chegarem a Dachau. Tudo isso a despeito da promessa de Himmler de que o campo seria entregue intacto.
Mais ou menos ao mesmo tempo, soldados britânicos aproximaram-se de Bergen-Belsen. As descobertas feitas ali tornaram-se famosas. No Campo I, 40.000 pessoas foram encontradas vivendo em meio a 13.000 cadáveres insepultos, mas em condições tão ruins que muitos morreram após a libertação. O tifo, que por ali grassava violento, vitimou muitos internos, principalmente judeus da Hungria e Polônia, que eram maioria ali.
Os Aliados têm sido criticados, de certa maneira justificadamente, por se terem aproveitado logo das descobertas de campos de concentração para fazer propaganda. Com isso, fizeram que os alemães decidissem não abandonar as áreas em que havia campos de concentração sem antes os evacuar, se possível. E o problema fugira das mãos de Himmler, pois Hitler ordenara que todo interno dos campos que pudesse andar tinha de ser deslocado.
Quando a evacuação não fosse possível, teriam de ser massacrados. Isto quase se realizou em Dachau, pois havia um plano para colocar ali os internos dos campos circundantes e bombardeá-los do ar. Mas os acontecimentos foram mais rápidos. Os americanos, a 24 de abril, entraram em Dachau, onde encontraram numerosos semivivos e semimortos.
Em Theresienstadt, onde Eichmann prometera ao representante da Cruz Vermelha que não havia mais uma única deportação, soube-se, a 12 de abril, que todos os arquivos do campo tinham sido destruídos, dando a impressão de que se pretendia fazer um massacre. O campo estava sufocantemente lotado de evacuados de quatro outros campos. Contudo, graças ás providências tomadas pela Cruz Vermelha, que de imediato hasteou sua bandeira no campo, os que ali estavam foram salvos da execução ou evacuação.
Por toda a Alemanha, delegados da Cruz Vermelha lutavam então por salvar o que restava das populações dos campos de concentração. Em Mauthausen, superlotado, como todos os outros, de gente vinda de outros campos, eles conseguiram impedir a concretização do plano de pôr os prisioneiros numa fábrica subterrânea e fazê-la ir pelos ares. A 8 de maio, o campo foi entregue às tropas de Patton.
Apesar de se encontrar a Alemanha já com os dias contados, as evacuações não paravam. Em Oranienburg, os prisioneiros eram removidos praticamente aos olhos dos russos e com os agentes da Cruz Vermelha sueca impotentes para agir. Tudo o que podiam fazer era acompanhar a coluna, fornecendo-lhe comida e transportando os doentes para trás das linhas aliadas. Ao mesmo tempo, de Sachsenhausen e Ravensbrück, colunas idênticas, de homens e mulheres famintos, esgotados e desesperançados, estavam sendo levados para os últimos bolsões de resistência nazistas. Contudo, dera-se uma ordem que modificara a vigente nessas ocasiões: os desgarrados não deviam ser fuzilados. Eram recolhidos por caminhões da Cruz Vermelha.
Quando seus salvadores se debruçavam sobre eles, para levantá-los, os prisioneiros, já por hábito, imploravam que não os fuzilassem.
A tragédia teve prosseguimento até os últimos dias de abril - dias que Hitler dedicou á feitura de seu testamento, em que instava seus sucessores a prosseguir na política por ele adotada.
Alguns dias mais tarde a guerra na Europa terminava.
Hitler estava morto, assim como Heydrich e Himmler. Kaltenbrunner em breve seria julgado em Nuremberg e, depois, enforcado. Eichmann desaparecera, e também Höss, por algum tempo. Muitos seriam descobertos nos anos seguintes; alguns jamais o foram.
Mortos também se encontravam numerosíssimos judeus da Europa. Em 1939, segundo os números constantes do anuário judeu americano publicado em 1946-1947, as populações judias da Alemanha, seus aliados, satélites e nações submetidas montavam a 9.282.500. Por volta de 1946 não iam além de 3.169.000, uma queda de quase dois terços. Os dois países em que se registraram as mais acentuadas baixas foram, como seria de esperar, a Áustria e a Alemanha. A população judaica alemã de 1939, de 240.000 caíra para um vinte avos daquele número; a população austríaca, de 60.000 desceu para um doze avos. Mas não se pode atribuir o fato exclusivamente à "Solução Final". No tocante à Alemanha e à Áustria, houve o concurso também do êxodo maciço registrado após a guerra. Sem nos determos no exame pormenorizado do número de baixas nação por nação, por ser de certo modo especulativo, fontes as mais fidedignas situam em torno de 4.500.000 o número de judeus mortos no transcurso do segundo conflito mundial.
Entretanto, a rendição incondicional da Alemanha não representou a solução do problema físico e psicológico dos que sobreviveram ao holocausto, criado pelo regime nazista e pela "Solução Final".
Duas décadas se passariam até que os campos de "Pessoas Deslocadas" se esvaziassem, enquanto que um mundo negligente, o mesmo que permitira a realização da "Solução Final", cuidava dos seus negócios. Tornou-se lugar-comum dizer que, por trás da apatia humana, o que ocorreu foi um crime mais espantoso que a sangrenta história do homem registra. Sua enormidade e a complexidade que dessa enormidade surgiu são tais, que desafiam a narrativa coerente ou completa. Sob todos os aspectos, foi a realização de uma psicose em escala nacional. E talvez seja por causa disso que, embora plenamente documentado - graças sobretudo à devoção dos seus perpetradores à ordem e ao procedimento - ele ainda esteja cercado por mistérios oriundos das intrigas e da necessidade de segredo entre homens que sabiam estar cometendo crime, apesar das desculpas de que agiam em consonância com suas teorias raciais. Já existem bibliotecas inteiras sobre o assunto e nenhum dos livros diz tudo o que tem a ser dito; muitos tratam apenas de uma faceta do problema, de um incidente, da história de um campo ou de um massacre.
Mas outro lugar-comum é dizer que, apesar de toda a sua hediondez, o crime foi totalmente inútil. Ele não deu a menor vantagem aos nazistas. Apesar das invencionices sobre tramas sionistas, das mentiras reformadas dos "Protocolos dos Sábios de Sião", das supostas conspirações financeiras da judiaria internacional, em doze anos de perseguição, com milhões de palavras e de documentos judeus sendo por eles manipulados, não conseguiram os nazistas propagandear nada de útil a seus propósitos. Os judeus não eram os todo-poderosos que Hitler imaginava; nem na Grã-Bretanha nem nos Estados Unidos eles conseguiram o apoio que poderia ter salvo grande percentagem deles. Enquanto isso, as provas que os nazistas encontraram apenas mostravam que os judeus, homens e mulheres, se consideravam tão alemães quanto seus perseguidores. Nas sinagogas, a maioria rezava não pelo sucesso de conspirações apócrifas, mas pelo seu país e pelos seus governantes, como nas sinagogas britânicas eles hoje rezam pela Rainha e pela nação, usando as formas do "Livro das Orações" da Igreja Anglicana. Tal era o patriotismo que nutriam, que as velhas e tradicionais famílias de judeus alemães se recusavam a deixar o país, aguardando a "recolonização" em casa, com as malas prontas.
Longe de lucrarem com a "Solução Final", os alemães contribuíram, instituindo-a, para a própria queda. Além de fazer o mundo voltar-se contra eles, a medida levou-os ao suicida desperdício de cientistas, de técnicos e de mão-de-obra especializada. Também houve má aplicação de recursos técnicos limitados, tais como a sobrecarga de um sistema de transporte já sob a pressão causada pelos ataques aéreos aliados. Por causa disso, suprimentos vitais não chegavam à frente de batalha. Havia o bloqueio das estradas quando milhares de prisioneiros eram evacuados, e tudo isso no momento em que a nação já lutava pela própria sobrevivência. Eichmann seria capaz de rir alegremente diante da queda de qualquer cidade alemã, desde que o último trem a deixá-la estivesse levando judeus para os campos da morte!
A fidelidade aos programas da "Solução Final" deve ter criado para as forças combatentes muito mais dificuldade de comunicação do que qualquer movimento de resistência. E ela causou um dano muito maior para a causa alemã. Tem-se afirmado coerentemente que se os alemães se tivessem comportado de maneira diferente durante a campanha russa; se Hitler não tivesse dado suas notórias ordens que fizeram dela uma "guerra sem cavalheirismo", o resultado poderia ter sido muito diferente. Os Estados Bálticos já se sentiam atormentados sob o jugo stalinista. Milhares haviam sido deportados, para destruir neles o nacionalismo e o espírito de independência. Havia outros grupos assim, na própria Rússia, que podiam passar para o lado alemão, e às vezes passavam, pois a Rússia, não nos esqueçamos, ainda é um império de nações independentes reunidas sob um governo central por czares despóticos e brutais. Se Hitler quisesse destruir o bolchevismo, este teria sido o meio de fazê-lo. Suas barbaridades permitiram a Stalin a chance de exigir de todo o povo que travasse uma "guerra patriótica". E para isso os Einsatzgruppen muito contribuíram, pois, seja qual for o sentimento do povo em relação à minoria que lhe tenha varado a fronteira, mesmo que a tenha na conta de elemento de libertação, ao ser alvo de barbaridades, de tratamento impiedosamente cruel, inconcebe o princípio segundo o qual o "inimigo do meu inimigo é meu amigo". Sobretudo quando, como aconteceu com os Einsatzgruppen, pouco se cuidava para que somente as pessoas certas fossem executadas. Administradores alemães, como Wilhelm Kube, chegaram a protestar que não só judeus, mas também a população em geral, sem quaisquer conexões comunistas, estavam sendo saqueados e fuzilados. E mesmo que aqueles grupos tivessem sido mais escrupulosos, seria bom que lembrassem que tais demonstrações de violência crua não ajudam em nada a criar confiança entre os "libertados". Há de sempre prevalecer a sensação de que também possam vir a ser tratados assim.
A "Solução Final" não foi apenas um crime de proporções inimagináveis, com uma única vítima multiplicada ao infinito. Foram três grandes crimes, dos quais o cometido contra os judeus foi apenas o primeiro. O segundo foi ter levado homens, em nada diferentes de seus semelhantes, a se desfazerem do mais comezinho princípio de decência a ponto de se prestarem a servir de cúmplices na trama diabólica. É inútil tentar crer que tudo seja culpa do sistema. Os homens precedem os sistemas; não existisse o homem não existiria o sistema. Se havia um sistema errado, este era mais antigo que o instalado pelos nazistas. Era o velho sistema humano da complacência, da apatia, da covardia moral, de se adotar a posição de menor resistência.
O terceiro grande crime foi o perpetrado contra toda a raça humana. Antes da segunda década deste século, a melhor representação do inferno era encontrada no "Inferno" de Dante ou nas pinturas de Bosch e Dürer. Entretanto, Verdun, Hiroxima e a "Solução Final", episódios das duas grandes convulsões mundiais reproduziram melhor o reino de Satanás que a concepção artística de Dante, Bosch e Dürer.
Além disso, o que os homens foram ou o que fizeram podem novamente ser ou fazer. O primeiro crime probabiliza os subseqüentes. Basta que pensemos na Europa de antes de 1914 para ver o que três décadas e três visões do Inferno fizeram ao que outrora era uma crença na boa vontade básica, mesmo dos inimigos. A "Solução Final" deixou-nos para sempre receosos de que as teorias raciais que elegeram os judeus em vítimas podem fazer de outro grupo étnico qualquer alvo de perseguições e abominações.