O fabuloso tesouro português com 500 anos que o Brasil deseja
14.02.2020 07:55 por Sara Capelo
São 14 folhas num papel de trapo, com fibras resistentes em linho. Na frente e verso de cada uma delas, Pero Vaz de Caminha fez um relato "rigoroso" em tinta ferrogálica do que encontrou no Novo Mundo
A porta da caixa-forte tem cerca de 50 centímetros de espessura. No seu interior estão algumas preciosidades. Uma delas está numa capilha, em cartolina alcalina, para proteger este que é um dos tesouros nacionais da Torre do Tombo e um Registo de Memória do Mundo da Unesco. São 14 folhas num papel de trapo, com fibras resistentes em linho. Na frente e verso de cada uma dessas folhas, está o registo, em tinta ferrogálica, da descoberta do Novo Mundo, feito a 1 de maio de 1500 por Pero Vaz de Caminha.
Esta Carta de Pero Vaz de Caminha foi agora identificada à SÁBADO pelo Instituto Brasileiro dos Museus (Ibram) como "um objeto de desejo" brasileiro. Caso o país decida avançar para um pedido de restituição histórica, disse fonte oficial deste organismo, esta é um exemplo de bem desejado. Todavia, a discussão sobre a restituição de bens culturais ainda é "embrionária" no Brasil (também o é em Portugal, como revelou a SÁBADO em exclusivo na edição desta semana). Não existe um "grupo institucionalizado" para a pensar, nem "consensos acerca de pedidos formais de repatriação", continuou o Ibram, num email.
Até hoje, repetem à SÁBADO tanto o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a Direção Geral do Património Cultural (DGPC), nenhum "tem registo" nesse sentido. De nenhum país.
"Há muita gente no Brasil envolvida no património índio e africano que deve ficar pasmada com este pedido", refere Francisco Bethencourt, antigo diretor da Biblioteca Nacional. "Este pedido é típico de um país com independência declarada pelos brancos, que queriam autonomia, nomeadamente para perpetuar o tráfico de escravos e a escravatura, mas não pretendiam qualquer rutura com o sistema social colonial. A referência que lhes ocorre, ao nível institucional, é a carta do navegador português que reportou as primeiras impressões da costa e dos nativos ao rei português", explica à SÁBADO por email o agora professor no King's College.
O debate centrado em África
Francisco Bethencourt considera que "este tipo de discussão sobre a carta de Pero Vaz de Caminha não podia ser mais deslocada" isto porque "o debate da devolução que se desenvolve na Europa tem a ver com pedidos concretos de países africanos que reclamam objetos considerados importantes para a reconstituição do passado das culturas locais." O especialista centra, portanto, geograficamente o debate em África: no caso português, "os pedidos têm que ser feitos pelos países independentes interessados, seguidos de constituição de comissões de inventariação e identificação de objetos que se enquadrem no proposto atrás descrito."
Caso o Brasil avançasse com este pedido (e já listámos acima os muitos senãos), dificilmente seria atendido, acrescenta o historiador José Manuel Garcia.
"A carta é um documento português, que sempre foi português e nunca deixou de ser português. Enquanto que há coisas gregas do Partenon que foram para Londres indevidamente. Aquela carta sempre foi portuguesa. Ela não pode ser repatriada porque nunca deixou de estar em Portugal desde o momento em que o Pero Vaz de Caminha a enviou."
Este especialista na época da expansão portuguesa aponta uma solução: "Seria um gesto muito simpático cedê-la ao Brasil. Mas para Portugal é uma marca dos seus Descobrimentos. Tirando empréstimos eventualmente prolongados, a doação da carta parece-me muito difícil de aceitar, porque é património nacional, da Unesco."
Um tesouro "fabuloso"
A Carta de Pero Vaz de Caminha, como ficou conhecida, raramente sai da Torre do Tombo. E mesmo ali, os investigadores que queiram estudá-la têm que primeiro fazer um pedido de consulta e esperar que este seja autorizado. E a consulta só é possível em horário restrito.
Quando a teve nas suas mãos (obrigatoriamente protegidas por luvas), o historiador José Manuel Garcia sentiu "o peso da história": "Pensar que há mais de 500 anos [o documento] estava no Brasil. Eu já o conhecia, por o ter estudado, mas a sensação de que o documento foi escrito num ambiente virgem, de descoberta: a ideia de que eu estava a descobrir um documento em que se descobriu o Brasil teve um significado emocional", relata este especialista em Descobrimentos à SÁBADO.
Pero Vaz de Caminha, natural do Porto, partiu com Pedro Álvares Cabral em direção à Índia como escrivão. A sua missão era "relatar oficialmente o que se passava" a D. Manuel. As 28 páginas que enviou ao rei acabaram por se revelar "um documento fabuloso": "Ele era um escrivão muito bom e que ultrapassou a sua função normal, porque teve uma inspiração literária e um registo fotográfico do que aconteceu." Quase como um jornalista? Sim, confirma José Manuel Garcia. "Historiadores e jornalistas disseram que era um autêntico repórter, que aproveitou a oportunidade."
A capacidade e a riqueza descritiva de Pero Vaz de Caminha, que tinha então 50 anos, são em si já motivo suficiente para este ser um tesouro nacional. "Tem um rigor muito maior do que aquele com que os italianos escreviam. O Américo Vespúcio, que deu o nome à América, também descreveu viagens ao Brasil a seguir ao Pedro Álvares Cabral. Tinha muita imaginação e erros. E o Pedro Vaz de Caminha não deu erros e não mentiu. O Américo é mais fantasioso e falso", continua o historiador.
Há outras razões: antes de mais, a carta na Torre do Tombo é "100% original". É conhecido outro relato, de um anónimo, que escreveu um diário da viagem até às Terras de Vera Cruz. Mas "só se conhece uma tradução italiana, não existe versão portuguesa."
Depois, é pormenorizada, muito rigorosa. Na Torre do Tombo há outra carta original, de um cirugião, o mestre João, que também fez a viagem. "Mas é de duas páginas, pequenina, com apontamento científico e técnico da viagem. Tem um apontamento do desenho do Cruzeiro do Sul (que é um conjunto de estrelas). É engraçada a ilustração, mas é um documento técnico", continua José Manuel Garcia.
Humidade, temperatura, exposição
Depois de guardada cuidadosamente por D. Manuel, José Manuel Garcia aponta para 1817 como o ano da primeira notícia da existência da carta, quando foi publicada num livro, no Brasil.
E a Carta só regressaria a esse Mundo Novo em 2000, para uma exposição que celebrava precisamente o que relata: "o achamento" deste território. Fora essa exposição, só há registo de outra saída da Torre do Tombo, em 2016, para ser exposta em Belmonte, a terra natal do navegador que levou a armada até ao Brasil, Pedro Álvares Cabral.
A sala de 30 metros quadrados, na Torre de Menagem de Belmonte que a recebeu, foi alvo de obras para garantir uma temperatura entre os 18ºC e os 22ºC e com níveis de humidade entre os 45% e os 55%. As janelas foram anuladas, para controlar "em absoluto" as condições do ar, escreveu na época o Diário de Notícias.
A vitrina onde a Carta esteve exporta era monitorizada em permanência para evitar alguma desregulação que danificasse o documento. Passados seis meses, regressou à capilha alcalina na caixa-forte do Tombo.
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