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Mensagem
por Pasquale Catozzo » Qua Jan 18, 2006 2:09 pm
A crise revolucionária de setembro/outubro na Bolívia, com seus massacres, ações de massas, enfrentamentos e desafios, seguiu um ritmo tão vertiginoso que mesmo os observadores atentos tiveram dificuldade em acompanhá-la. Nestas horas, a recuperação de uma cronologia ajuda a dar as dimensões andinas da sublevação no país mais pobre da América do Sul:
2 de setembro: Sindicalistas do município de El Alto, a 12 quilômetros de La Paz, marcham desde o povoado de Caracollo até a capital. Protestam contra o projeto de exportação do gás boliviano para os Estados Unidos, passando por um terminal na costa do Chile. Começa a onda de protestos. El Alto, uma imensa cidade-favela de 800 mil habitantes, a 4 mil metros de altitude, onde mora boa parte das classes trabalhadoras da Grande La Paz, jogará um papel-chave na rebelião.
14 de setembro: Com a mesma exigência, a seção/El Alto da COB (Central Operária Boliviana) promove uma greve geral de 24 horas. A paralisação é um sucesso. A Assembléia de Direitos Humanos adverte que o país vive uma situação semelhante à da convulsão social de fevereiro, que terminou com 30 mortos.
15 de setembro: A Confederação Sindical Camponesa inicia uma série de bloqueios de estradas no Altiplano de La Paz, pela nacionalização do gás e por reivindicações agrárias. O governo coloca as estradas sob controle militar.
16 de setembro: O vice-ministro de Hidrocarburos, Mario Requena, manifesta sua preferência pela exportação do gás via Chile. É um desaforo ao movimento popular que exige o contrário.
18 de setembro: O Centro de Estudos pelo Desenvolvimento Trabalhista e Agrário (Cedla, na sigla em espanhol) afirma que o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial pressionam pela exportação via Chile.
19 de setembro: Grandes passeatas contra a venda do gás paralisam La Paz e outras cidades, numa jornada de protesto dirigida pelo líder oposicionista Evo Morales. A exigência de nacionalização cresce. O governo rejeita as reivindicações e minimiza os protestos.
20 de setembro: O ministro da Defesa, Carlos Sánchez, comanda pessoalmente uma operação militar para retirar do Altiplano centenas de turistas isolados pelos bloqueios de rodovias, entre eles dezenas de estrangeiros. Em um incidente sobre o qual pesam suspeitas de provocação, morrem cinco camponeses e dois militares.
23 de setembro: As mortes do dia 20 intensificam os bloqueios e os protestos em La Paz. O presidente Sánchez de Lozada diz: "Ou elegemos o caminho da unidade, da paz e da construção, ou elegemos o caminho da divisão, da violência e da destruição".
24 de setembro: O governo insinua que existe um movimento subversivo armado que manipula os protestos populares.
25 de setembro: A COB convoca uma greve geral pela renúncia do presidente.
26 de setembro: A Igreja Católica e outras instituições humanitárias pedem diálogo. O governo se recusa a conversar com a COB e abordar o tema do gás. Só aceita tratar com os movimentos camponeses e sobre outros pontos de pauta.
29 de setembro: Começa a greve da COB, com adesão parcial. O governo proclama o fracasso do movimento e atribui a ele objetivos políticos. Começa em La Paz uma onda de passeatas diárias.
30 de setembro: Sánchez de Lozada diz que não renunciará. Nega que a situação seja grave. Afirma que a imprensa estrangeira exagera e que grupos radicais fomentam a agitação, sob influência de grupos armados estrangeiros.
2 de outubro: Greve geral em El Alto. Os acessos rodoviários a La Paz são bloqueados. Instituições humanitárias insistem no diálogo e na pacificação. O governo ainda tenta desqualificar os protestos e assegura ter pleno controle da situação. O Exército ocupa posições em pontos estratégicos de La Paz e El Alto.
4 de outubro: Rumores sobre a iminência de um estado de sítio, de um golpe ou de um auto-golpe de Estado.
5 de outubro: O vice-presidente Carlos Mesa sugere que as empresas petrolíferas aumentem os royalties que pagam, como caminho para superar a crise. Sua proposta é mal recebida pelo governo, que ameaça encarcerar os bloqueadores de rodovias, sob a acusação de promoverem a guerra civil.
6 de outubro: Sindicalistas e moradores de El Alto tomam o centro de La Paz, com uma grande marcha que reclama a renúncia de Sánchez de Lozada.
8 de outubro: Começa outra greve geral em El Alto, pelo gás e a renúncia do presidente. O governo envia tropas para manter a ordem.
9 de outubro: Violenta repressão deixa um saldo de dois mortos em El Alto. O presidente lamenta as mortes e responsabiliza minorias radicais que querem "dividir e destruir Bolívia". Recusa-se a fazer concessões.
10 de outubro: A greve em El Alto endurece. O bispo local, dom Jésus Juárez, condena as mortes e o desprezo pela dignidade da vida humana; diz que o protesto deve-se à "violência, frustração, falta de trabalho, à fome que sofre a maioria das pessoas e à falta de políticas adequadas e transparentes do governo".
11 de outubro: Mais repressão, três mortos em El Alto. Seis oficiais e agentes da polícia são detidos, acusados de fomentar um motim como o de fevereiro, estopim da explosão social então ocorrida.
12 de outubro: Dirigentes e instituições humanitárias abandonam as tentativas de mediação. Responsabilizam pelo fracasso a intransigência governamental, que não cede na questão do gás.
13 de outubro: Massacre de El Alto. A repressão, comandada pelo ministro da Defesa, deixa 32 mortos na cidade.
13 de outubro: Prossegue o Massacre de El Alto. Mais 26 populares são abatidos a tiros. La Paz é paralisada por grandes passeatas. Começa uma greve geral espontânea, com a adesão de trabalhadores dos transportes, açougueiros, padeiros e outras categorias. O vice condena a repressão e rompe com o governo. Sánchez de Lozada diz que não renunciará e que conta com o apoio dos militares e da coalizão governista para restabelecer a ordem.
14 de outubro: Evo Morales condena e rejeita a ingerência dos EUA e da OEA visando manter o governo Sánchez de Lozada. Os partidos de esquerda assinam comunicado conjunto pela renúncia do presidente por ter perdido legitimidade. Propõem a renúncia do presidente, a posse do vice, um governo provisório, medidas de emergência sobre o gás e a crise social e a convocação de uma Assembléia Constituinte. Mais denúncias de ingerência norte-americana: o semanário Pulso denuncia que militares estadunidenses ligados à embaixada participam da direção das operações repressivas, enquanto as munições vêm direto de Miami. Em El Alto, o povo insurgido se apodera da cidade enquanto a tropa baixa para La Paz.
15 de outubro: Sánchez de Lozada propõe um referendo consultivo sobre a exportação do gás, a revisão da lei de combustíveis e a viabilização de uma Assembléia Constituinte, com ele na presidência. O recuo parcial e tardio não surte efeito, sendo rejeitado pelos movimentos sociais, que multiplicam as ações de massas. Camadas médias e personalidades intelectuais e artísticas começam uma greve de fome pró-renúncia.
16 de outubro: La Paz assiste à maior manifestação da sua história, exigindo a renúncia. Este sustenta que os protestos são uma conspiração "narcoterrorista" e promete restabelecer a ordem com o menor custo de vidas que for possível. Aumentam as dissidências no bloco governista. Diante do fracasso de uma tentativa de mediação da OEA, os presidentes do Brasil e da Argentina decidem enviar emissários a La Paz. Grandes colunas de camponeses e mineiros chegam à capital vindas de todo o país para se somarem aos protestos.
17 de outubro: A NFR (Nova Força Republicana) deixa o bloco governista e exorta o presidente a renunciar. Seu outro aliado, o MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária, na sigla em espanhol) do social-democrata Jaime Paz Zamora, chama-o a "assumir uma decisão responsável e democrática" e anuncia que o presidente comunicará sua decisão ao Congresso. O enviado brasileiro ao país, Marco Aurélio Garcia, anuncia que o pedido de renúncia foi aceito. O povo, senhor de La Paz e da Bolívia, festeja nas ruas a vitória e planeja sua libertação.
"Gutta cavat lapidem"